quinta-feira, 8 de março de 2018

MINICONTO TRISTONHO


Noc, noc. Bate a recordação de quão feliz nós erámos. A Tristeza é uma visita que não bate à porta. Entra sorrindo sem saber o que ela significa, com um bolo na mão decorado de repetidas oportunidades. Caminha na sucessão dos fracassos sem peso na consciência. Adentra agradecida pela casa, consolando invencível os cômodos. Senta trajando a imbecilidade dos corações, tem fome de lembranças e a sede irrefreável dos tuaregues. Servimo-lá suportando seu passado, artifício para adivinhar se a mentira é uma pequena felicidade. 
A Tristeza gosta de perguntar se notamos sua mudança, o cabelo novo escarpado, a roupa nova e fria como sempre foi, mas que nunca reparamos. Respondemos com lágrimas nos óculos, cientes que ela nos rouba os talheres ao fim do dia e pede pra levar um tupperware da nossa mansidão. 
A noite perdura sobre o brinco incógnito da lua. Lá está ela: a Tristeza de papo para o ar, bafejando palavras aos jovens que sabem sofrer mais. Para ela, a dor dos velhos são passeios diários. Insone e indomável, conta bem sobre tudo isso. 
Vão saindo os convidados. Destinam-se à porta com a dor voraz que cada um tem. Despedem-se um a um. Erguem uma tragédia de adeus. Porém, a Tristeza fica com todo o tempo que ela traz. Com sua desmesura. Com sua envelhecida negociata. Com o inoportuno. A Tristeza não está fora do jogo. Dá as últimas cartas. Cigarro à deriva, fumegando alguns destroços. Tosse uma sugestão. Soluça bêbada um acidente. Diz que foi sem querer. Nunca quis prejudicar os poetas, mas que eles eram perigosos. Falava por labirintos. Em alto mar. 
Era tarde demais. A Tristeza não partia, mas partia a gente em homeopáticos desfiladeiros. Bocejávamos. Pescávamos uma lástima que só ali a gente via. A Tristeza tinha vida própria. Queríamos deixá-la sozinha. Diríamos que temos sono e que um cansaço soturno já nos rasgava. Não conseguimos demovê-la. Ela insistia em permanecer. Apontava o dedo para o relógio afirmando que para a dor não se tem hora. Não se sentia inconveniente. Convinha acreditar.
A Tristeza era a nossa visita. Lá estava ela. Ali. Percebe? Vê? Sentada como uma armadilha para a infelicidade. Julga-nos com seu olhar impossível de escapar. Não havia remédio para a situação. A Tristeza não era uma ameaça.Ela queria ganhar nossa confiança. Apostávamos em suas palavras dentro da gente. Com o tempo confiamos piamente. Mais difícil era o amor. E amávamos a Tristeza.
Um dia ela desapareceu. Talvez estivesse ido ao banheiro, foi, quem sabe, lavar um copo ou encharcar um rosto inocente. Herdávamos sua postura. A Tristeza voltaria logo. Ela nunca se demora. O relógio o sabe chorando sua espera.
Noc, noc. A Tristeza talvez batesse agora no peito. Por certo, estaríamos prontos para abrir a porta e bater a porta para enfrentar, prenhes de segurança, a vida, totalmente nobres de Tristeza, até a próxima visita. Noc, noc.
(VFM)

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