quinta-feira, 17 de agosto de 2017

QUARTA-FEIRA


Enquanto você lê esta carta
Estarei no quarto. Porta fechada.
Cansado de tudo, cheio de nada.
Vejo tua foto ainda, Marta.
Pegue os meus livros e reparta
Aos olhos de quem se diz amada.
Visto minha roupa engomada
De domingo, mas hoje é quarta.
Dentro do envelope há também
O perfume de umas notas de cem,
Que são as minhas economias.
Peguei do pai o velho revólver.
Até logo. Uma bala só requer
Pra acabar com minhas poesias.
Uso sapatos. Fechei a cortina.
Deve ser noite. Não há sol algum.
Só a tua foto me ilumina.
O alarme soa. Marca uma e um.
Prometo não sujar a latrina.
Calma... Não se assuste com o boom.
É só uma lágrima da retina.
(VFM)

Um grito ao Pai


gritávamos pelo pai
para que ele nos visse. pai
só nos via criança
entre leite, mato e cabelo sujo de lua.
dizia antes do nosso
sono demoníaco:
"não vou criar filho vagabundo".
engolíamos à seco
o mandacaru que nutria
nossa porta de entrada na cama.
nunca entendi a vagabundagem
nas cicatrizes dos abraços,
nem ao espalhar os livros
aonde não havia fôlego.
pai gritava com sal na boca
e cinto na mão para amarrar
o meu sonho ao do meu irmão.
o sol na casa úmida estalava
nas roupas adormecidas.
o frio gemia no bocejo das cobertas.
nossas pernas irrequietas
rasgavam as ruas desertas
e o assoalho da casa suportava
o peso serelepe da nossa infância.
algumas vezes também gritei pelo pai
só para desatar os pernilongos
prenhes de noite e sangue
na preguiça da parede rabiscada
de brancos arquipélagos e palavras.
no fundo da casa o latido do cachorro
coloria nossas brincadeiras
e espantava as assombrações
trepadas no muro musgoso.
eu e meu irmão vagabundeávamos
na arborescência dos dias.
plantávamos estripulias no jardim.
deixávamos nossos retratos talhados
na memória, ecoando
pelas saudades do agora.
eu nem sabia que fazíamos poemas
quando gritávamos pelo pai.
a gente queria mesmo era descobrir
paisagens e criar aventuras.
pegávamos os cachimbos fedidos
escondidos e nos fazíamos piratas
para roubar o nosso próprio futuro.
bagunçávamos veemente
as bebidas do bar para tontear
o tempo e nos encher de alegria.
anunciávamos aos amiguinhos
que o pai estava por todos
os lados da casa.
medo e euforia. nervos altos.
era isso com a chegada do pai.
a casa no tecido trabalhador do pai.
pai gritava pulmonar para espantar
brinquedos e poeira e dizer volumes
de inteligências e passados.
tantas histórias embaixo dos anos.
tantas histórias embaixo dos anos.
pai tem momentos que nos vê criança
e acha que não aprendemos a pular tristezas.
não percebe que guardamos dentro
da gente alguns dos seus espelhos
e reflexos importantes da nossa desordem.
por isso, pai, continuamos a gritar
o seu nome. a gritar pelo pai. pai.
(VFM)

Um poema Temeroso


(A moda de Tomás Gonzaga)
Eu, TEMER, fui primeiro 
Deputado. Cansei de ser vice.
Sou interino na malandragem.
Como Jucá muito bem me disse
O acordo, as carnes são nossas,
O tribunal e as notas mais grossas.
Ah! Minha bela Marcela, glória!
Eu paguei a todos se contares
Para me salvar a reputação.
Salve, salve os parlamentares
Porque de tudo nada provo
Eu voltei presidente de novo.
Grava aí Gilmar, meu bom amigo,
Outras mudanças serão enormes.
Sai Janot ingrato com seu pranto.
Veja enquanto o povo dormes
A gente contente dessa sorte
Até que o país chegue a morte.
(VFM)

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

NOCTURNA


restou meia cerveja quente
e adormecida ao teu lado.
você dormiu sem dizer adeus,
sem tirar as lágrimas do rosto,
que borravam a roupa, maquiagem,
a falsa alegria, a camisa, o decote
cismador, a paisagem abatida dos anos.
o copo ficou - lá - rendido ao teu batom
caro e fracassado, que ninguém sabe
dizer em qual boca a tua letra ficou.

NO PONTO


A espera do ônibus é aquele momento de reparar silêncios;
Calcular as dívidas que a saudade jogou no peito descampado.
Ficamos a observar o sol que atravessa a rua sem olhar para os dois lados da situação.
Uma senhora passa com seu cachorro desfocado
E imaginamos que alguma dor dorme no fundo da sua bolsa
E que ela se deixa levar pela dor que o pobre animal carrega.
Na espera do ônibus os olhos buscam uma palavra infinita pelas intermináveis propagandas.
Correm os olhares diante das vitrines entediadas.
Queremos ir para algum lugar ou voltar para a paisagem segura da casa
Que desde a sirene do despertador nos aguarda.
A multidão que corre nas calçadas e deixam rastros,
Confundindo nos com as casas construídas em nosso tempo improvável.
A espera do ônibus é aquele momento no qual descobrimos que nos dobramos de segredos
E que embarcamos com tanto para dizer,
Mas que esquecemos de dizer.
Chegamos ao ponto preocupados porque os vizinhos hão de falar na intimidade das janelas:
"Este aí está a amar".
(VFM)

HAIKAI PARA BASHÔ


Quando amanheceu 
Descobre-se que o sonho ciscou
Em um galo cego.

(VFM)

FOME ANIMAL


o cachorro está desamparado perto do churrasquinho do bar miúdo.
a fumaça o aniquila e o seu rabo merencório varre os passos bêbados,
que, ainda de uniformes surrados do trabalho, trabalham copo a copo.
o cachorro cheira o pé da mesa de sinuca, onde vão rolando
bolas e lágrimas e palavrões e cinzas de inúmeros cigarros.
a música e a TV ligada misturam-se no enrolar das línguas e dissabores.
o cachorro toma um chute malicioso de um torcedor derrotado, jogando-o
para o escanteio da imunda rua. o cachorro lambe a dor enquanto
algumas pulgas ceiam no seu dorso magro. o cachorro coça repetidamente
os seus sonhos no pelo marrom desnutrido para atiçar outros prazeres.
as mesas do bar miúdo vão se enchendo de gente e copos e mentiras e fracassos.
o cachorro se enche de espera e de mais fome. uma cadela encosta com receio
ao lado da triste companhia. senta calada, taciturna, com as tetas inchadas.
há uma solidão os unindo diante da fome.
há homens bêbados. o cachorro vai mastigando a solene noite, que farta de estrelas
vai entontecendo ainda mais os bêbados. a cadela madruga um futuro filhote
na sombra da lua cheia e no escuro cio. o dono do bar miúdo vai empurrando
os clientes bêbados para os seus trapézios. o sono vai fechando portas e olhos e homens.
os bêbados tropeçam em angústias baratas e nas desditas da pesada vida.
o bar e homens adormecem. um menino sujo e esfarrapado e faminto passa,
mas não há mais nada no bar miúdo. o cachorro dá uma mijadinha na porta
para marcar o cenário ao sol feroz e impaciente. a cadela mata a sede
numa poça incógnita e concêntrica. o menino em certo buraco grita chamando
o cachorro e a cadela. eles correm com suas últimas forças.
o cachorro e a cadela latem um poema vazio dentro da noite, na rua, no mundo, dentro do papelão.
não há nome para os bichos. há fome. talvez os bichos se chamem famintos.
(VFM)

QUADRA TEMER ÁRIA


Agosto do desgosto.
Temer absolvido.
Há quem não dá ouvido. 
Brasil tem um encosto.