Gota a Gota
É... Bem sei que nos acostumamos com muita coisa, mas não devíamos.
Não faz nem um mês e estávamos reclamando da sauna excessiva pela qual a cidade passava. Tirávamos as roupas mais frouxas e agradáveis para combinar com o bafo do tempo. O próprio sol se esgotava de tanto fazer calor. Todo dia a mesma coisa, era dar um passo na calçada para descer uma gota de suor, incômoda, pelos poros. E isso durou... E a gente se acostumou.
Dias a mais, poucos, para nos tirar da piscina e guardar nosso bloqueador solar, veio a mudança, um tanto quanto repentina: Chuva! Mas não foi dessas garoas refrescantes. Foi temporal. Consequentemente, tudo mudou. Comecei a notar a alteração climática da seguinte forma: estava andando pela rua quando um bando de pássaros saiu, aos montes, das árvores.
Mansinho e discreto começou a pingar, gota a gota, como se estivesse no fim, a esgotar. Logo depois, vazou das nuvens aquela cachoeira, as nuvens abriram a torneira ao máximo. E se segura! Não perdoou ninguém. Para quem não tinha lavado o mofo da alma, foi a oportunidade. A cidade, em minutos, fez-se água, somente apontando um prédio ou uma árvore mais girafa para sabermos que ali existe uma calçada.
Chuva, para mim, é alegria para arco-íris, assim ele se faz aparecer. Convenhamos, quem gosta de chuva? A mãe Natureza com suas plantinhas e a horta do Manoel no meio da Caatinga agradecem. Interessante pensar, porque sempre se coloca em filmes de terror ou em momentos de tensão e suspense o início de uma chuva. Chuva apavora. Espanta penteado. Apressa o passo. Chuva dá é medo!
E mais, como não se assustar com seus companheiros: o raio e o trovão. Um sempre anunciando o outro: um segue riscando o espaço com seu clarão, como se estendesse um tapete no céu, para dar voz ao estrondo. E nós, aqui, recolhidos, carregando a mesma frase de desespero: “Aí vem chuva das brabas
Eu, por sinal, não gosto de chuva, apesar de saber dos seus benefícios. Sei também que o seu excesso é devastador. A chuva lambe tudo, mas sempre deixa um rastro d’água, como se dissesse: “Passei aqui!”. Quantas vezes não vemos os vários desabrigados, flutuando sobre um móvel, parecendo marujos sem aventura nos olhos, inocentes, tentando lutar contra a fúria das águas, inutilmente.
O pior é sair em períodos assim, chuvosos. Eu, como não me ajeito com a tal chuva, não levo medo no corpo, eu enfrento-a sem proteção, guardo a chuva nos ombros, e caso ela me pese ou molhe demais, ponho-a no bolso, junto com a chave de casa. O problema não é só ensopar, o perigo vem também com as inúmeras sombrinhas que ziguezagueiam, dominando as calçadas. Umas, como sempre, mais maldosas, tentando acertar um olho distraído, ou obrigando você a afundar numa poça.
Acho engraçado este desfilar de sombrinhas, cada uma no seu estilo: colorida, xadrez, clássica. E tem também aquelas capengas, toda quebrada, que o dono não larga mesmo, fica desviando dos pingos numa proteção mal armada. Eu, por falta de costume, já perdi as contas de quantos guarda-chuvas deixei órfão. Porém, a chuva também deixa muita gente órfã. Quando a tristeza no céu é tamanha, haja lenço para secar tanto chororô aqui embaixo.
Queira ou não, chover se faz necessário. Bom mesmo é a vontade que a chuva nos traz de ficar deitadinhos em casa, vendo um filme que nos distraia, com uma companhia para nos fazer cafuné. Quem dera pudéssemos, quando chovesse, ficar sempre assim. Mas, chuva é chuva: refresca, limpa, dá vida e afoga. Ela faz parte de um ciclo.
A gente não devia, mas acabamos nos acostumando com tudo. E como percebo que o fim de semana será chuvoso, ficarei em casa, confortavelmente deitado, vendo a chuva lá fora, trancada. Deixo-a lá, batendo nas coisas. Não a deixarei entrar.
Não digo que estou me acostumando com a chuva, mas, estou gostando de me acostumar, em tempos assim, de abrir um bom livro, com o som das gotas na janela, e sentir, gota a gota, o mistério de cada palavra.
Gosto de me desaguar num livro.