segunda-feira, 1 de junho de 2015

UMA DOSE SUICIDA


um copo se suicidou no bar enquanto
Nietzsche palitava os dentes e retirava
do gasto molar a falta de sentido na vida.
gozando daquele fato à sua frente, como
um fenômeno de uma sociedade marcada
pelo apanágio do individualismo, Nietzsche
franzia o vasto bigode ainda sujo de feijão
e escutava, com seu ouvido indomado, a
solidão de uma mosca. "sem a música a vida
seria um erro", reflexionava diante do seco
estalo em ré sustenido do copo suicida.
o medo se deitava no rosto dos outros
clientes, enquanto o garçom servia mais
uma dose cavalar e justa de campari a
Nietzsche. para ele o copo era um imane
bunda-mole, mas sabia que foi a vontade
para atingir a autorrealização do seu destino.
alguns homens compadecidos acorreram
ao suicida e foram recolhendo os cacos da
condição humana. não foi fácil recolher
as pontiagudas certezas e não se ferir,
ademais, com as incertezas. quando
conseguiram recolher o copo que morreu de
uma maneira orgulhosa, já que estava cheio
de mentiras e embriagando diversos covardes,
e não vivia de uma maneira orgulhosa, indo
de mão em mão, sem uma epistemológica alegria,
resolveu suicidar naquele momento oportuno.
Nietzsche tossiu algumas contribuições, antes de
acender o cachimbo, encobrindo seu pensamento
alto: "perdido seja para nós aquele dia em que
não se dançou nem uma vez! e falsa seja para
nós toda a verdade que não tenha sido
acompanhada por uma risada".
Encetaram as preces ao seu lado e as bundas
amáveis e interrogativas das desconhecidas
respostas esquentaram o ambiente daquele
sórdido bar. transeuntes que passavam por
perto, indefesos e feridos no que deviam
acreditar, perguntaram o que havia ocorrido.
"um copo se suicidou no bar", lastimavam
os presentes cristãos. Após elucidado "o nascimento
da tragédia", uma senhora mais sestrosa bate
no ombro apolíneo de Nietzsche: "qual o nome
da vítima?". ele, orgiástico à indagação, intoxicou
o ar caliginoso com sua resposta: "zaratrusta!",
e continuou seu brinde à morte como uma festa.
a oração prosseguia e o nobre filósofo terminava
sua bebida sanguínea, delibando a baco seu
olhar eterno e explicitamente barato. Nietzsche,
cansado da latomia, pediu a conta e deixou os
10% para que o suicida pagasse. se despediu
com um aforismo exaltado e um olhar catatônico:
"até deus tem um inferno: é o seu amor pelos
homens". O garçom, sem muito entender aquela
figura exótica, ficou a observar Nietzsche sair com
sua fresca risada, desinfetando a velha moralidade
da religião, com sua farda de super-homem.

(VFM)

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