segunda-feira, 7 de agosto de 2017

FOME ANIMAL


o cachorro está desamparado perto do churrasquinho do bar miúdo.
a fumaça o aniquila e o seu rabo merencório varre os passos bêbados,
que, ainda de uniformes surrados do trabalho, trabalham copo a copo.
o cachorro cheira o pé da mesa de sinuca, onde vão rolando
bolas e lágrimas e palavrões e cinzas de inúmeros cigarros.
a música e a TV ligada misturam-se no enrolar das línguas e dissabores.
o cachorro toma um chute malicioso de um torcedor derrotado, jogando-o
para o escanteio da imunda rua. o cachorro lambe a dor enquanto
algumas pulgas ceiam no seu dorso magro. o cachorro coça repetidamente
os seus sonhos no pelo marrom desnutrido para atiçar outros prazeres.
as mesas do bar miúdo vão se enchendo de gente e copos e mentiras e fracassos.
o cachorro se enche de espera e de mais fome. uma cadela encosta com receio
ao lado da triste companhia. senta calada, taciturna, com as tetas inchadas.
há uma solidão os unindo diante da fome.
há homens bêbados. o cachorro vai mastigando a solene noite, que farta de estrelas
vai entontecendo ainda mais os bêbados. a cadela madruga um futuro filhote
na sombra da lua cheia e no escuro cio. o dono do bar miúdo vai empurrando
os clientes bêbados para os seus trapézios. o sono vai fechando portas e olhos e homens.
os bêbados tropeçam em angústias baratas e nas desditas da pesada vida.
o bar e homens adormecem. um menino sujo e esfarrapado e faminto passa,
mas não há mais nada no bar miúdo. o cachorro dá uma mijadinha na porta
para marcar o cenário ao sol feroz e impaciente. a cadela mata a sede
numa poça incógnita e concêntrica. o menino em certo buraco grita chamando
o cachorro e a cadela. eles correm com suas últimas forças.
o cachorro e a cadela latem um poema vazio dentro da noite, na rua, no mundo, dentro do papelão.
não há nome para os bichos. há fome. talvez os bichos se chamem famintos.
(VFM)

Nenhum comentário:

Postar um comentário