quinta-feira, 23 de junho de 2016

AH! PUTA DA MINHA INFÂNCIA!


Ah! puta da minha infância!
primeiro você era o que meu pai
lia no banheiro às escuras.
os banhos urdidos e demorados.
a tv ligada penosamente.
rodei esquinas e inventei cidades
dizendo pra família que era
dos meus ocres amigos.
visitei teu quarto mal educado.
levei músicas para nossos
encontros sobrenaturais.
quis a ti nas revistas da igreja
e te moldei como pressente
um infante e pobre coração.
Ah! puta da minha infância!
sombra da minha guitarra.
beijei teu grito marítimo
no frescor dos lençóis bordados,
sob um sol escarlate e nu.
teus seios de uvas, ardendo
em pura substância lúbrica,
onde a noite esmagou teu vinho.
eu, contando os minutos que
o tempo desfibra, pus os olhos
na tua vulva interessada de sentidos.
Ah! puta da minha infância!
água inicial dos meus desejos,
fizeste em mim o vento
dos sorrisos em que a lua
perturbada me madrugou.
beijo ainda tua confundida
intimidade, teu gozo martirizado,
na teoria da minha inocência.
brinquei com teu corpo,
pulei fases fecundas de barro
e de estrelas. fui carne breve e
teu dinheiro da manhã, quando
na flor do signo li teus silêncios.
Ah! puta da minha infância!
te prendi em minhas mãos
o perpétuo instante. desenhei
em ti centauros e pesadelos.
bárbaro boquete a incendiar
minha voz aguda e transformadora.
a casa que te conheci ainda vive.
no arco do inverno rompemos
o quarto com espasmos de aves
fugidias. quem ouviu sabe
dos rios imaginados e do sangue
que nos tomaram o rosto em
desalinho. o tempo renasceu.
hoje estou velho de superstições.
Ah! puta da minha infância!
queria sua boceta esplêndida e
inalterável a me fazer girar-girar.
nunca mais pulei as cordas
da tua entrega, que levantaram
as rosas na minha rua fria.
a alegria pueril, dentro de um sonho,
corre atrás da tua boca vermelha,
atrás dessa fonte, em que algures,
vi outros pudores correrem
no mais belo e iluminado
parque das minhas diversões.
agora que estou no fim, eu te
procuro, sabendo que, nesse
esconde-esconde, só acharei
o caixão como meu último brinquedo.
Ah! puta da minha infância!
ninguém compra mais o teu nome.
o algodão doce tem sabor de
ternura, imobilidade e vacância.
(VFM)

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